“A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar,
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá”
[“Roda viva” – Chico Buarque]
Celebramos o último Natal, veio 2020, e o tal vírus estava no pé de página de jornais: afinal, China é lá do outro lado do mundo! No Carnaval, enquanto foliões enchiam ruas de cidades brasileiras, ele já assustava a Europa: mas tranquilizava-nos lembrar que o Oceano Atlântico nos separa. Poucas semanas depois isolamento social era realidade em diversas cidades do País.
Não é caso singular: ao longo da saga humana muitos episódios tidos como imprevistos, pequenos ou localizados ganharam dimensão e mudaram o rumo da história. Só nesse século três; com dinâmicas distintas: o 11/SET (2001) começou pelas instituições, afetou a economia e daí a população; a “crise do sub-prime” (2008) iniciou-se pela economia, afetou as instituições, até chegar à população; o Covid-19 (2020), ao contrário, começou pela população, abalou as instituições, e já afeta fortemente a economia. Todas atingiram em cheio a Europa; mas as duas primeiras nasceram nos EUA e a última na China.
Entre as leituras dessa quarentena forçada me interessei por esse poderoso personagem: o vírus. Aprendi que são seres acelulares. Por não contarem com metabolismo próprio dependem de outras células (“hospedeiras”) para se multiplicar: invadem uma célula saudável, assumem seu controle e a reprogramam para que passe a replicar, de forma acelerada, seu material genético. Essa singela descrição do vírus, e de sua atuação no mundo biológico, não é uma boa metáfora de como o Covid-19 vem impactando e alterando nossas vidas e relações interpessoais? Nossas sociedades, economias e arranjos institucionais?
Algumas mudanças serão transitórias. Outras de prazo maior. Mas, como em processos dessa proporção e abrangência, algumas inflexões serão perenes e, até, definirão nova ordem. No transporte; na mobilidade e logística, p.ex, a experiência de supermercados, antecipando horários de abertura para idosos, pode alavancar a implantação de escalonamento de horários; ideia/projeto antigo, entretanto com resistências em tempos de normalidades.
Mas, quiçá, o maior legado das vicissitudes presentes, para esses setores, deve ser a aceleração do transitar para o mundo digital e virtual; dos quais o “delivery” é só a parte mais visível: aplicativos, teleconferências, internet das coisas, uso de “big-data” e inteligência artificial, “porto-sem-papel”, deverão se desvencilhar de amarras dos “tempos de paz” e serem impulsionados. Aliás, talvez em pouco tempo, ao invés da tradicional divisão pessoas, cargas e serviços, o trânsito e o transporte, a mobilidade e a logística, para fins de planejamento, operação e gestão, passem a sê-lo em massa, energia e informação!
Mudanças na ocupação e utilização do espaço urbano também já se fazem sentir nas metrópoles; seja no abastecimento e uso de equipamentos do entorno/bairro, seja de mudanças em direção ao interior: multi-centralidades, há muito discutidas no plano conceitual, podem também ser alavancadas no pós-Covid; com implicações sobre a relação acessibilidade-mobilidade, bem como sobre a governança metropolitana:
O “Estatuto da Metrópole” (Lei nº 13.089/15) tem como pilares centrais “Funções Pública de Interesse Comum – FPIC” e “Governança Interfederativa”. Ainda não há consenso sobre o rol dessas funções mas, sobre trânsito e transporte, particularmente o transporte público, desconhecem-se divergências. Aliás, há também lei específica sobre “Política Nacional de Mobilidade Urbana” – PNMU (Lei nº 12.587/12).
Esses são temas e debates antigos, que nem leis nacionais lograram impulsionar. E, aliás, sob alguns aspectos (financiabilidade de operação e investimentos nos sistemas; p.ex) até se agravaram: talvez possa ser mais um legado do Covid-19.
(*) Roteiro de intervenção no webinar promovido pela TranspoData: “Os desafios para a mobilidade pós-crise” – 16/JUL/2020
Frederico Bussinger é consultor, engenheiro e economista. Pós-graduado em engenharia, administração de empresas, direito da concorrência, e mediação e arbitragem. Foi diretor do Metrô/SP, Departamento Hidroviário (SP) e Codesp. Presidente da SPTrans, CPTM, Docas de São Sebastião e Confea. Coordenador do GT de Transportes da Política Estadual de Mudanças Climáticas. Presidente do Consad da CET/SP, SPTrans, RFFSA; da CNTU e Comitê de Estadualizações da CBTU. Secretário Municipal de Transportes (SP) e Secretário Executivo do Ministério dos Transportes. Membro do Consad/Emplasa e da Comissão Diretora do Programa Nacional de Desestatização.
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Meu caro Freddy muito boa tua aproximação com os desastres próximos e sua causa no atual. Creio, ao final, que você suscita ampla discussão nos temas metropolitanos e além, sem dúvida necessário passarmos a ter debates construtivo sem ideologias vivenciadas em nosso pobre passado. Cada um entre nós “os preocupados” com a mobilidade humana, em nível nacional mergulham seus pensares no urbano, do meu ponto de vista equívoco secular desde os tempos do não saudoso Prestes Maia!
Isso posto creio que poderíamos organizar uma live para discutirmos com outros amigos, não radicais, o futuro!
O que você acha?
Como sei que o amigo gosta de trocar ideia e será um sim, vamos pensar em nome.
[…] Regiões metropolitanas: desafios e oportunidades da mobilidade no pós-covid Algumas mudanças serão transitórias. Outras de prazo maior. Mas, como em processos dessa proporção e abrangência, algumas inflexões serão perenes e, até, definirão nova ordem. No transporte; na mobilidade e logística… […]