A pandemia do coronavírus deu maior transparência e visibilidade a problemas antigos e recorrentes na sociedade brasileira. Dentre eles, a situação caótica do transporte coletivo urbano, que já se via ameaçado por forte perda de passageiros, e que, agora, atingiu níveis dramáticos, com empresas sendo obrigadas ao fechamento por falta de recursos para atender as demandas contratuais.
Os desafios da mobilidade no pós-pandemia pautaram o terceiro encontro da segunda temporada do projeto Notáveis do Transporte. De forma consensual, os participantes vislumbram soluções a partir da visão coletiva de sociedade e não mais pelo entendimento de setores ou, até mesmo, de posições individuais. O encontro reuniu Jefferson Ferrarez, diretor-geral de Vans da Mercedes-Benz; Frederico Bussinger, economista e consultor; Júlio Cesar, da Rouxinol Turismo, de Minas Gerais; Laércio Ávila, da HP Transportes, de Goiânia; e Victor Gonzaga, da UBus, de São Paulo.
Bussinger sustentou que a pandemia deu realce aos antigos problemas do transporte coletivo. Para ele, as mudanças demandarão o repensar da acessibilidade e a migração da população para periferia redefinirá como será o acesso ao trabalho e às famílias. “Tudo é ainda incerto, mas é certo que teremos queda de demanda e viagens mais curtas. Haverá maior uso de modos ainda incipientes de deslocamentos e um rearranjo na ocupação do espaço urbano”, projetou.
Ele assinala, no entanto, que a pandemia também é oportunidade para melhorar as condições atuais. Algumas já são visíveis, como a questão ambiental com a sensível redução de poluentes. “Temos, sim, chances para evoluir”, reforçou.
Ávila diz acreditar numa retomada mais forte, pois a pandemia é um período de ameaças e de oportunidades. Para ele, a mobilidade não inteligente e caótica, que não prioriza o coletivo, foi determinante na perda da qualidade do serviço. “A pandemia está mostrando que precisamos agir coletivamente e com uma transformação permanente. Acredito que o pensamento coletivo vai prevalecer, mesmo que haja algumas ações individuais. Não tem outra saída”, salientou.
Bussinger entende, porém, que no setor de transportes há necessidade de ações mais imediatas para garantir a sobrevivência do setor. Enfatizou que o subsídio do serviço é urgente e deve partir do governo federal com a volta da cobrança de alíquota da CID, que foi zerada para contribuir com a recuperação econômica da Petrobrás. “O governo se eximiu da sua responsabilidade com o transporte coletivo urbano”, cobrou, ao lembrar de países europeus, nos quais o governo central subsidia até 80% da tarifa. Assinalou que os investimentos em transporte precisam ser constantes e de longa maturação. Adverte que hoje são imprevisíveis, razão para as muitas obras paradas, em especial de infraestrutura.
Ávila acrescentou que o financiamento do transporte vem se agravando há muito tempo, principalmente pela ausência de subsídios públicos, atualmente restritos a poucos municípios. Afirma que o principal subsídio é o cruzado por meio da tarifa paga pelo usuário comum que assegura a gratuidade para alguns grupos e públicos específicos. “Mas isto é insuficiente para sustentar a operação. É preciso pensar em outras formas, como taxações de espaços públicos, para subsidiar o transporte de massa”, salientou.
De acordo com Ávila, a situação das empresas é gravíssima e que precisa de auxílio imediato para não entrar em colapso. Júlio Cesar inclui a carga tributária elevada como outro fator crítico, lembrando que o transporte rodoviário de passageiros paga 19% de ICMS, enquanto o aéreo é isento. “Isto fortalece o clandestino, precisa dar um corte”, reforçou.
Novo formato de mobilidade
Na avaliação de Jefferson Ferrarez, a migração no formato do transporte das pessoas já se dá há algum tempo. Os grandes ônibus estão perdendo espaço para veículos menores por conta do comportamento dos usuários que buscam mais comodidade, conforto e menor número de pessoas nos trajetos. Para o executivo, é preciso um intenso desenvolvimento de soluções com foco multimodal, atendendo as demandas de ponta a ponta por meio de veículos auxiliares. “Há necessidade de adequações dos produtos para fazer a integração, desde o tamanho físico até as configurações”, afirmou. O foco, de acordo com Ferrarez, é dar agilidade ao trajeto, usando recursos que otimizem o transporte, sustentado por conectividade que permita a execução de rotas mais inteligentes.
Victor Gonzaga entende que os aplicativos de mobilidade individual surgem como soluções auxiliares para suprir a demanda e atender às novas exigências dos clientes. Para ele, ajustar o serviço ao que o cliente quer favorece o operador, com a recuperação de usuários e atração de novos. “É importante oferecer experiências aos passageiros, que eles tenham todas as informações possíveis para escolher o melhor serviço”, ponderou.
Argumenta que, mesmo antes da pandemia, quando já havia tinha linhas deficitárias, o poder concedente seguia exigindo investimentos. Neste momento, em que a situação piorou e o número de passageiros é mínimo, é impossível seguir investindo. “Surge, aí, a oportunidade do transporte sob demanda, para suprir necessidades específicas dos usuários, o que repercute na diminuição dos custos operacionais”, enfatizou.
De acordo com Júlio Cesar, o transporte por fretamento, criado nos anos 1950 para atender o surgimento da indústria automotiva no ABC paulista, tem sido solução adequada para serviços não supridos por metrô ou transporte coletivo. Cita, em especial, atendimento de eventos, deslocamentos entre hotéis e aeroporto, além de setores industriais específicos, como a mineração, grande cliente do fretamento, bem com indústrias localizadas na periferia. “Não somos concorrentes, mas complementares do transporte urbano”, assegura. O executivo estima que para cada ônibus fretado em circulação nas ruas é possível reduzir de 15 a 20 veículos, o que gera menos emissões de poluentes e engarrafamentos.
Ele acredita que, passada a pandemia, deverá ocorrer aumento de demanda dos serviços fretados, especialmente em setores essenciais, como saúde, logística e e-commerce, além da perspectiva de uma migração de pessoas para regiões da periferia em função do home office. Mas admite estar preocupado com o comportamento dos clientes nos próximos meses. “É ainda uma incógnita”, limitou-se a comentar.
Em 2019, após dois anos de pesquisa, a HP Transportes criou o City Bus 2.0, um serviço para deslocamentos de curta distância para atender especialmente de passeios, compras, consultas médicas e visita a igrejas, entre outros. Trata-se do primeiro transporte público coletivo por aplicativo de celular da América Latina, com 95 mil clientes já cadastrados, e 200 mil viagens realizadas num raio de 90km².
De acordo com Ávila, o serviço surgiu a partir da cultura de pensar diferente e de ter uma área de relacionamento com cliente para entender suas demandas. O sistema tem como foco reduzir o tempo de deslocamento, invertendo a dinâmica das linhas fixas, que geram perda desnecessária de tempo. “Estamos apostando em novas saídas para mobilidade”, frisou.
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