Entrevista – Orlando Merluzzi
Orlando Merluzzi atua no setor automotivo desde 1985. É um profissional raro: começou no chão de fábrica e chegou a posições de alta liderança. Teve que lidar com as mais importantes inovações e transformações da indústria automotiva no País mas também encarou grandes dificuldades. Passou por crises sociais, políticas e econômicas, inflação descontrolada, falta de insumos, greves aguerridas, abertura de mercado, fechamento de empresas, a entrada de novas montadoras, a chegada a internet e, em seguida, todas as grandes inovações digitais até o momento.
É, sem dúvida, um profissional com uma visão e tanto do setor. Especialmente, e até mais profundamente, do segmento de veículos comerciais. Engenheiro de produção eletrotécnica pela FEI, administrador de empresas pela USP, especialista em marketing pela FEA e conselheiro de administração certificado pela FDC, atualmente conduz a MA8 Consulting e é o criador e anfitrião da plataforma “Pensamento Corporativo”.
Orlando, conta um pouco da história do pós-venda de caminhões no Brasil.
Antigamente, nas décadas de 1960 e 1970, não havia o conceito das vendas ativas. Não era tão profissionalizado como hoje e ouvíamos dizer que a “assistência técnica” era feita “por susto”. O negócio era vender; assistência técnica era problema para a oficina resolver. Para muitos concessionários, assistência técnica era um mal necessário, aquela sujeira de graxa, óleo e ainda ocupava uma área enorme, mas os clientes frotistas se profissionalizaram e passaram a exigir, também, a profissionalização da assistência técnica das montadoras e assim surgiu o pós-venda. A primeira fábrica de caminhões no Brasil foi a FNM (FeNeMê) na década de quarenta. Depois veio a Mercedes, a Scania e todas as demais. A Volkswagen Caminhões e Ônibus originou-se da Chrysler. Contudo, creio que a verdadeira profissionalização do pós-venda, subindo a régua, aconteceu com a Volvo na década de 1990 e anos 2000, quando os conceitos de absorção de pós-venda, disponibilidade (uptime), atendimento remoto e planos de manutenção tomaram corpo, mas não posso deixar de mencionar o comprometimento da Volkswagen Caminhões, em que a área de Assistência Técnica perdia o dinheiro, mas não perdia o cliente. Quanto a Mercedes, que reinou durante anos (e ainda reina), apesar da grande capilaridade territorial, faltou um pouco de estratégia naquela transição entre os anos 1970 e 1980, permitindo o surgimento de um mercado paralelo muito forte, depois, ninguém segurou mais. As grandes inovações no pós-venda aconteceram com a Volvo e Scania, principalmente nos processos de atendimento remoto e telemetria. O que veio depois, foi cópia, de alguma forma.
Planos de manutenção são oferecidos há mais de 30 anos. Houve significativas evoluções neste tipo de contratação de serviço?
Sim. Acredito que a mais importante evolução aconteceu na Volvo, no início dos anos 2000, em que o fundo constituído a partir das mensalidades pagas pelos clientes era gerido de tal forma que, ao final, se sobrasse dinheiro, esses recursos pertenciam ao cliente e não à montadora. Até então, as montadoras entendiam aquilo como lucro delas, uma miopia em relação ao pós-venda a partir do plano de manutenção. Quando a empresa informava aos clientes que havia recursos disponíveis, eles ficavam surpresos e geralmente o cliente recebia em extensão do próprio plano, dois, três, quatro meses; era uma forma de cativar e reter os clientes. Outra evolução é recente, lançada pela Scania com plano de manutenção pagos pelo uso (sob medida). Cada montadora tem seu plano de manutenção que mistura gestão financeira com gestão do cliente, não há grandes fórmulas mágicas. Uma coisa importante, em relação a gestão de planos de manutenção, é que as contas precisam ser muito bem-feitas no início e o processo de gestão durante o período de formação do fundo (em que os veículos não consomem tanta manutenção) tem que ser certificado. Afinal, da metade do contrato em diante o veículo vai consumir e o fundo será deficitário naquele período. Esse foi um problema enorme quando algumas concessionárias no Brasil decidiram formar seus próprios fundos para planos de manutenção e algumas quase quebraram por má gestão desse processo; houve casos em que as montadoras tiveram que intervir e socorrer.
Não é de hoje que executivos de vendas das fabricantes de caminhões dizem que não vendem só caminhões e sim “soluções completas de transporte”. O que, na prática, isso significa hoje em dia?
O termo é antigo e continua sendo a melhor ferramenta de vendas. Pouca coisa mudou em relação às soluções para transportes que oferecíamos anteriormente, salvo pela questão da evolução tecnológica dos caminhões, que permitiu maior acuracidade das informações de campo. Planos de manutenção, financiamentos exclusivos, carência, telemetria, treinamento de motoristas, direção econômica, direção defensiva, peças em avançado, treinamento de mecânicos dos clientes, atendimento remoto, garantia estendida, recompra programada, monitoramento exclusivo, gestão de frotas, seguros e mais recentemente, locação temporária. Basicamente é tudo igual, pode ter mudado o nome de um ou outro benefício, mas os conceitos não mudaram.
Como serão os serviços técnicos de prevenção e reparo de caminhões nos próximos anos? Podemos pensar em algo como já estão praticando na medicina, tipo “cirurgia à distância”?
Nos carros elétricos isso já acontece e há reparos feitos na garagem do cliente, a distância, diretamente pela fabricante, em que o concessionário nem fica sabendo. As montadoras tendem a ter total controle sobre a jornada do cliente e sobre a vida do produto. As concessionárias vão perder isso em breve. No caso dos caminhões, é diferente, a concessionária precisa acompanhar toda a jornada do cliente, mas eu sou cético em relação ao avanço da tecnologia elétrica sobre os caminhões.
Qual a razão de seu ceticismo quanto à eletromobilidade nos veículos de carga?
Será preciso reinventar as baterias e nem mesmo as baterias em estado sólido (com eletrólitos sólidos), irão resolver o problema. Não acredito em caminhões elétricos como logística viável além dos centros urbanos, sou defensor do caminhão movido à biometano e a célula de hidrogênio tendo o etanol como fonte primária de energia para médias e longas distâncias. As moléculas de etanol são fontes ricas de hidrogênio e em um País com as dimensões territoriais como o Brasil, não se pode complicar e encarecer as coisas. As células de hidrogênio que geram eletricidade, a partir do etanol, já estão em desenvolvimento e o Brasil precisa ser protagonista nisso. A telemetria ainda deve evoluir mais e eventualmente os softwares dos caminhões sofrerão mais atualizações a distância, mas com certo limite. Com relação a eletromobilidade, tem muita gente acreditando em fadas e duendes, é preciso separar a realidade da propaganda e marketing. Frotista sabe fazer conta e os caminhões elétricos são, por enquanto, uma forma do frotista entrar em clientes com práticas fortes de ESG, mas na realidade, o frotista coloca dez caminhões elétricos, faz uma propaganda enorme e completa a frota com noventa caminhões movidos a diesel. Não tem muito milagre nessa equação e os preços dos veículos elétricos não irão baixar nos próximos dez anos, esqueçam isso.
Além da manutenção e facilidades financeiras, quais outros serviços as montadoras ainda podem oferecer a seus clientes frotistas nesta década?
O Metaverso irá entrar nesse ambiente nos próximos anos para oferecer treinamentos ou soluções técnicas. As soluções para transportes atuais já oferecem bem mais que manutenção e facilidades financeiras, mas não vejo nenhuma nova ferramenta de outro mundo no “front”, a não ser que as fabricantes queiram oferecer motoristas junto com o caminhão, o que seria uma loucura em termos de risco.
Como serão as concessionárias de caminhões e ônibus até o final desta década no Brasil? Quais as mudanças mais significativas que podem acontecer neste negócio?
Pouca coisa irá mudar nas concessionárias de caminhões e muita coisa irá mudar nas concessionárias de carros e comerciais leves. O que teremos é a consolidação de grandes grupos concessionários absorvendo os pequenos, coisa que já está acontecendo há muitos anos e algumas montadoras tentando atuar diretamente no varejo, mas é uma fórmula muito difícil de gestão e governança; a Volvo é a única montadora no Brasil que conseguiu fazer isso com sucesso.
Quais mudanças podem vir em termos vendas de veículos comerciais e de serviços para os frotistas com a quinta geração de internet no Brasil?
Não vejo grandes mudanças, além da chegada do Metaverso; nem a quarta geração de internet se consolidou direito. É o que eu disse no início de nossa conversa, sobre a evolução da tecnologia, irá facilitar a comunicação, a telemetria, o controle de frotas e da jornada do cliente e do produto, mas as ferramentas já existem, só serão melhoradas.
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